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Obtenção da nacionalidade portuguesa. Um negócio das Índias

Publicado em 12-08-2016

Não se sabe ao certo quantos cidadãos indianos obtiveram a nacionalidade portuguesa recorrendo a documentos falsos mas estima-se que sejam milhares. A operação Livro Mágico abalou mas não travou as redes criminosas que se dedicam a obter de forma ilícita documentos falsos e que a troco de milhares de euros oferecem a nacionalidade portuguesa.

O ano passado 5.600 cidadãos indianos de origem portuguesa obtiveram a nacionalidade portuguesa. Por ano, o Instituto de Registos e Notariado (IRN) recebe em média 100 mil pedidos. Da Índia chega o maior número.

Isto significa que em média, diariamente, há 15 novos portugueses de origem indiana.

Entre estes, há quem tenha conseguido a nacionalidade com recurso a documentos falsificados ou melhor: documentos autenticados mas cujo o conteúdo não corresponde à verdade.

Quantos são? Não se sabe ao certo mas tanto as autoridades nacionais como indianas tem conhecimento desta situação.

Diariamente dezenas de pessoas fazem fila à porta do consulado Geral de Portugal em Goa para instruir processos de nacionalidade, cartões de cidadão e passaportes. Descendentes de portugueses? Alguns. Outros apresentam documentos que apesar de atestarem a sua descendência foram falsificados na origem, ou seja, nas conservatórias que guardam os registos originais deixados pelos portugueses quando saíram da Índia, em dezembro de 1961.

A lei portuguesa (n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 308-A/1975) determina que os nascidos até 1961 nos antigos territórios portugueses de Goa, Damão, Diu e Nagar-Aveli conservam a nacionalidade portuguesa por transcrição. Os descendentes até terceiro grau bem como a mulher, casada, viúva ou divorciada conservam igualmente a nacionalidade portuguesa.

O processo Livro Mágico, resultado de uma investigação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) permitiu desmantelar uma rede que facilitava a aquisição de nacionalidade portuguesa, através da falsificação de documentos mas não secou a raiz.

A convicção que existe, junto de várias fontes contatadas pelo site da RTP, é que o problema subsiste. Por um lado, os que foram detidos, os intermediários ou agentes, foram substituídos por outros que vieram a ocupar o seu lugar no mercado e, por outro lado, a rede tende a crescer uma vez que diariamente aparecem novos rostos dispostos a ganhar muito dinheiro com os processos de nacionalidade portugueses.
Um futuro na Europa

Os indianos veem na obtenção da nacionalidade portuguesa uma janela para um futuro melhor na Europa, nomeadamente no Reino Unido.

Os intermediários, agentes e advogados prometem tratar em três meses de um processo que demora dois anos e fazem-no, no mínimo, a troco de dois mil ou três mil euros, quando a instrução de um processo pela tabela portuguesa custa entre 170 a 200 euros, conforme se trate de atribuição ou aquisição. Mais: os pedidos de cidadãos nascidos entes de 1961 não têm custos.

É um negócio de milhares de euros. Segundo conseguimos apurar junto do SEF, só um dos detidos da operação Livro Mágico cobrou 30 mil euros por um processo.

Este indivíduo tinha em seu poder três mil processos para instruir. Isto significa três mil cidadãos que poderiam obter a nacionalidade portuguesa sem efetivamente terem direito, com recurso a documentos falsos, sendo que alguns destes processos incluem famílias inteiras.
Agências, mandatários e intermediários

A maior parte das pessoas que pedem a nacionalidade portuguesa, recorrendo a estes intermediários que por vezes subestabelecem em advogados em Portugal, não tem qualquer ligação ao país, não tem familiares portugueses e nem sabe bem onde fica Portugal.

Na maior parte dos casos não atuam por iniciativa própria. Recorrem a agências, mandatários e intermediários para conseguir a nacionalidade. Verdadeiras mafias organizadas que controlam todo o processo, a troco de muito dinheiro. Atuam com a conivência das conservatórias locais e das câmaras municipais dos antigos territórios portugueses na Índia.

E quando não tem clientes procuram. Na posse de documentação que atesta a possibilidade de obtenção da nacionalidade portuguesa batem à porta do putativo candidato, que nem sempre é um descendente de portugueses e oferecem-se para tratar do processo de instrução de nacionalidade portuguesa, com o pretexto de assim lhes ser facultada a possibilidade de deixarem uma vida de miséria e ir para a Europa, onde tem familiares e onde podem encontrar trabalho.

O grau de aliciamento é tão grande que mesmo que o candidato não tenha possibilidade de pagar, o processo é feito com o compromisso de posteriormente, quando estiver a trabalhar, pagar. O que muitas vezes acontece é que não há uma vida fantástica à espera destes indianos que acabam por trocar a miséria por mais miséria e ficar sujeitos à pressão dos angariadores.

Tratando-se de famílias numerosas os processos muitas vezes são instruídos para toda a sua família. E em cada processo, famílias inteiras passam a ser portuguesas sem qualquer ligação a Portugal.
“Mandaram-me vir aqui”

O desconhecimento das pessoas, algumas já idosas, sobre o que estão a fazer é, por vezes, total. Agem apenas porque são compelidas pelos filhos, netos e agentes que querem assim obter a nacionalidade portuguesa.

Confrontado com o que se está a passar, o cônsul Geral de Portugal em Goa confirmou que muito recentemente teve um caso de uma senhora de 80 anos que apareceu no consulado cheia de documentos na mão e quando lhe perguntou: “Minha senhora em que lhe posso ser útil?” Respondeu: “Não sei mandaram-me vir aqui”.

Rui Baceira afirma já ter “manifestado de forma reiterada” a sua “enorme preocupação” pelo que está a acontecer. Adianta que “há casos recorrentes de documentos instrutórios falsificados/usurpação de identidade que servem para instruir processos de nacionalidade e que muitos desses processos são efetivamente transcritos e completados em Portugal”.

Adianta que o choca sobretudo o fato de “muitas dessas pessoas não terem qualquer ligação com Portugal, nem afetiva, nem familiar e nem cultural. Não falam a língua portuguesa e nem sequer sabem distinguir Lisboa de Londres e querem unicamente o passaporte português, não pelo amor a Portugal, que nem sabem onde fica, mas sim porque pretendem sair dos antigos territórios portugueses na Índia para irem para a Europa, nomeadamente para o Reino Unido”.
Falsificações autenticadas
O processo começa com a falsificação dos assentos de nascimento e/ou de casamento. Falsificações que são duplamente reconhecidas.

O candidato à obtenção da nacionalidade, ou alguém por ele, obtém junto de uma conservatória local e a partir do livro original um assento. Com o recurso a químicos, solventes ou outros meios, esse assento é alterado com os dados que importa inscrever.

O notário assina o documento que lhe é apresentado pelo funcionário, já devidamente alterado e atesta a veracidade do mesmo. A partir deste momento o documento passa a ser autêntico.

Poderia ficar por aqui. Mas não. Posteriormente a assinatura do notário ainda é certificada pelo Collector, um magistrado do distrito.

Mas para valer em Portugal, ou a nível internacional, este documento ainda precisa de um terceiro reconhecimento. Ou é enviado para Nova Deli onde recebe a apostila do Ministério dos Negócios Estrangeiros indiano, ou vai ao Consulado Geral de Portugal em Goa, onde é feito o reconhecimento final.
Como atuam os serviços
O consulado, mesmo que tenha alguma dúvida, nada pode fazer, porque não pode pôr em causa a autenticidade do documento já certificada pelas autoridades indianas. Assim cabe apenas ao Instituto de Registos e Notariado se tiver dúvidas procurar indagar.

E é isso que tem acontecido nos últimos tempos.

Quando o Instituto de Registos e Notariado (IRN) desconfia da veracidade do conteúdo do documento porque, por exemplo, vem rasurado, ou acrescentado com outros nomes entre linhas, pede ao consulado na Índia para verificar junto da conservatória se confirma os dados que ali constam.

A diretora da Conservatória dos Registos Centrais, Maria de Lurdes Serrano, confirma ao site da RTP que, “no âmbito da instrução de processos e perante suspeitas sobre a veracidade do conteúdo de documentos estrangeiros apresentados, embora devidamente legalizados por apostila, os serviços diligenciam no sentido de tentar obter através de outras entidades a confirmação do conteúdos desses documentos: a representação oficial indiana em Portugal e o consulado português na Índia. Se as diligências efetuadas revelarem tratar-se de documentos falsos, as conservatórias comunicam esse facto ao Ministério Público”.

O problema é que se o documento é falsificado com a conivência do funcionário da conservatória, a resposta ao ofício do consulado para que se apure a veracidade é sempre invariavelmente a mesma, ou seja, o documento está conforme o registo do livro original.

A diretora da Conservatória dos Registos Centrais lembra que “as conservatórias, serviços desconcentrados do INR, não são órgãos de investigação criminal, nem está nas suas atribuições essa competência, pelo que só podem atuar dentro dos limites que a lei impõe”, ou seja, pedir a confirmação ou não da suspeita e enviar para o Ministério Público se a falsificação se confirmar.

Os pedidos de instrução de nacionalidade em Lisboa são despachados pela ordem de chegada. Só circunstâncias muito especiais tem prioridade. No entanto, como os agentes e advogados prometem tratar do processo com rapidez, não são raras as ações de intimidação pela demora, contra o IRN.

Neste momento, segundo foi possível apurar, estão a ser analisados os processos que chegaram a Portugal no final do ano passado.
Várias formas de falsificar
Complexo? Talvez, mas não fica por aqui e os números falam por si.

Damão é o Estado onde as autoridades portuguesas suspeitam que haja mais falsificações. No entanto, ao que o site da RTP conseguiu apurar, em 100 pedidos de confirmação da autenticidade, todos foram novamente homologados pelo conservador.

E não há qualquer tipo de controlo sobre os registos originais deixados pelos portugueses. Quem já investigou estes casos sabe que até há páginas que chegam a ser arrancadas e vendidas.

As falsificações são de diversos tipos. Um dos processos mais comuns passa por registar no assento de determinado casal com direito à nacionalidade portuguesa um ou mais descendentes que nunca existiram e que querem obter a nacionalidade.

A falsificação também pode dar lugar a usurpações de identidade que muitas vezes só são detetadas com o cruzamento informático quando é pedido o cartão do cidadão ou o passaporte. Ou seja, alguém que já morreu e que apesar de nunca ter transcrito a nacionalidade tinha direito a ela. Havendo esse reconhecimento os descendentes passam automaticamente a ter direito.

Mas também há situações de indianos que falsificam a sua identidade, no registo de nascimento e no passaporte para assim obterem a nacionalidade portuguesa. Aliás foi um caso destes que deu origem à operação Livro Mágico.

Há igualmente registo de pessoas que tem efetivamente nacionalidade portuguesa e vendem os seus assentos de nascimento a outras pessoas.

Outras vezes, os agentes procuram nomes de portugueses nas lápides dos cemitérios para contatar os descendentes ou simplesmente usar essa identidade nas falsificações.
Dois assentos de nascimento

O cônsul geral de Portugal em Goa revelou ao site da RTP que em situações de especial complexidade, a pedido das autoridades nacionais, já se tem deslocado pessoalmente às conservatórias e nessas deslocações teve a oportunidade de verificar no local, as divergências entre o documento que consta do processo e o registo original.

Rui Baceira recorda um caso em que existiam dois assentos de nascimento dados como verdadeiros em duas conservatórias distintas de Goa. Numa delas, após a consulta do livro original de registos verificou-se que os dados tinham sido alterados.

Todos estão ao corrente do que se passa e até há bem pouco tempo o IRN atribuía a nacionalidade portuguesa de forma quase automática.

Atualmente, segundo foi possível apurar, o cuidado é maior e o processo fica suspenso até que haja uma confirmação do pedido feito com base na suspeita. Sim ou não, é sempre dada uma resposta.

Contudo, há casos em que a falsidade do documento só é comprovada depois de atribuía a nacionalidade e nesta situação, quando o mal está feito, a cura exige remédios maiores, ou seja, é preciso provar que o cidadão tem outra nacionalidade, como renunciou à nacionalidade indiana, a prova não pode ser feita.

Certo é que com a nacionalidade portuguesa atribuída o cidadão indiano, agora português, pode pedir o cartão de cidadão e o passaporte. A partir daqui passa a circular por onde quiser como português e só alguma falha no processo e uma vigilância atenta poderão detetar alguma irregularidade, como aconteceu com o processo que deu origem à operação Livro Mágico.

Fonte:  www.rtp.pt

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