Símbolo ficou estendido na fachada do prédio da prefeitura de Val di Zoldo durante meses; gestor foi denunciado pelo advogado ítalo-brasileiro Luiz Scarpelli
O prefeito de Val di Zoldo, na Itália, nega ter cometido xenofobia ao expor a bandeira do Brasil na fachada da prefeitura, em protesto contra o excesso de pedidos de cidadania por descendência — ou iure sanguinis — apresentados por brasileiros na região. Procurado pelo GLOBO, Camillo De Pellegrin rebateu a acusação de ultraje ao símbolo nacional e se declarou contrário ao que classifica como uma “distorção” do sistema de concessão de cidadania.
A bandeira foi estendida na frente da prefeitura em janeiro deste ano. Na época, o prefeito usou as redes sociais para manifestar repúdio a um pedido do Estado, que teria solicitado prioridade aos processos de cidadania para ítalo-brasileiros nos cartórios locais. Em tom irônico, declarou: “Município de Val di Zoldo do Brasil, Estado do Rio Grande do Sul. Vamos até hastear a bandeira brasileira”.
Ao GLOBO, Camillo afirmou que a exposição da bandeira foi uma ação planejada para atrair a atenção das instituições italianas à necessidade de medidas corretivas no processo de reconhecimento da cidadania por descendência, que, nas palavras do prefeito, está “completamente fora de controle”.
Segundo De Pellegrin, tribunais e municípios estariam sobrecarregados com as solicitações. Ele também fala na existência de “escândalos frequentes”, que envolvem irregularidades administrativas e o aumento de práticas que considera distorcidas e economicamente exploratórias, ou seja, a cidadania italiana como um produto comercial.
— Não há hostilidade contra as comunidades de ítalo-brasileiros, muito pelo contrário. Minhas iniciativas visam protegê-los. A forte atenção da opinião pública gerada pela exposição da bandeira brasileira e pelas entrevistas subsequentes foi prevista e intencional. Essa e outras ações foram fundamentais para lançar luz sobre um fenômeno que está completamente fora de controle. As distorções são múltiplas, graves, e os efeitos de sua má gestão se tornarão cada vez mais significativos com o passar do tempo — defende o prefeito.
No início de dezembro, De Pellegrin foi denunciado pelo ato de protesto. A queixa partiu do advogado ítalo-brasileiro Luiz Scarpelli. Embora o símbolo tenha sido retirado do prédio há pouco mais de um mês, Scarpelli manteve a denúncia, apresentada, segundo ele, à presidência da República no Brasil, ao Ministério das Relações Exteriores, à Câmara dos Deputados e ao Senado.
Crítico à atitude do prefeito de Val di Zoldo, Luiz Scarpelli acredita que De Pellegrin e outros representantes de municípios italianos busquem apenas dificultar o reconhecimento da cidadania italiana “por racismo e xenofobia”. Ele acusa o governante local de se negar a emitir certidões de nascimento garantidas por direito aos cidadãos ítalo-brasileiros.
— Não cabe a ele questionar, cabe a ele cumprir o que a lei manda. Se ele não emite as certidões que o juiz mandou, está cometendo crime de omissão de ato de oficio. A tese dele é que não acha justo ter a cidadania reconhecida sem morar na Itália ou falar italiano, mas essa regra não existe — explica Scarpelli.
Processo de obtenção da cidadania italiana
Segundo Scarpelli, há três formas principais de obter a cidadania italiana: por ação judicial, pelo consulado ou por procedimento administrativo na Itália. Devido à maior agilidade no atendimento, a via judicial é uma das mais procuradas.
O processo envolve a constatação de vínculos sanguíneos com antepassados italianos. Com documentos que comprovem a árvore genealógica da família — como certidões de nascimento e casamento do antepassado italiano e de seus descendentes, até chegar ao requerente — um advogado pode ajuizar ação na Itália. Ele apresenta os documentos ao tribunal e pede que um juiz reconheça o solicitante como cidadão italiano desde o nascimento.
— A cidadania italiana é um direito de sangue. Toda pessoa que tem sangue italiano é italiana assim que nasce. Pode ser 200 anos atrás. Se provar que tem antepassado, é italiano. Seja descendente de homem ou mulher, não importa onde tenha nascido — diz o advogado.
A decisão, caso favorável, retroage à data de nascimento e confirma, assim, o direito à cidadania. O passo seguinte, segundo Scarpelli, é a execução. A deliberação da Justiça segue para o comune (prefeitura) italiano onde o antepassado nasceu. É a prefeitura que deve, então, emitir a certidão de nascimento italiana do requerente.
É nessa etapa que surgem as maiores dificuldades burocráticas. Segundo o advogado, algumas prefeituras relutam em cumprir as ordens judiciais e causam atrasos nos processos. Alguns já duram 3 anos. De acordo com Scarpelli, a extrema-direita também tem tentado modificar a legislação para restringir o reconhecimento da cidadania italiana.
— Tem um projeto de lei tramitando de que só é italiano quem nasceu na Itália e tem sangue italiano. Tem que ter sangue e ter nascido. Existe risco desse projeto passar. Também querem enxertar na lei orçamentária prevendo que, a partir de 2025, tenham que ser pagos 600 euros por cabeça para ajuizar uma ação [de pedido de cidadania]. Hoje, eu posso ajuizar uma ação para 50 pessoas da mesma família e pagar 545 euros. Isso vai ser votado nos próximos dias — explica.
‘Virou um negócio’
O prefeito Camillo De Pellegrin atribui as acusações de xenofobia ao que acredita ser uma campanha difamatória contra ele, conduzida por quem “lucra” com a concessão da cidadania.
— A cidadania italiana, como todos podem observar, virou um negócio, vendida e desvalorizada como se fosse uma liquidação de Black Friday. O próprio conceito de cidadania está em forte discussão. A cidadania é apenas um direito ou é algo mais? Não seria também um status que vincula a pessoa ao Estado, ao seu território? Existe um problema ou apenas Camillo De Pellegrin consegue enxergá-lo? — argumenta.
Até o momento, não foi apresentada denúncia ao Ministério Público italiano, mas o advogado ítalo-brasileiro afirma estar disposto a recorrer ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
— Eu sou um dos poucos que denunciaram fraudes escondidas por trás desses processos, ou ainda as agências que fazem promoções de Black Friday oferecendo “descontos” na cidadania. Esses são criminosos e delinquentes. Nesse ponto, concordo com o prefeito e podemos trabalhar juntos. Mas antes, peço a ele que respeite o povo e os símbolos brasileiros — disse o advogado ao jornal italiano Il Gazzettino.
O prefeito, por outro lado, diz que também está “pronto” para apresentar uma denúncia relacionada aos ataques constantes que diz sofrer nas redes sociais, por parte de cidadãos brasileiros que o “insultam e ameaçam”. De Pellegrin também afirma não ter recebido, ainda, nenhuma notificação sobre a queixa de Scarpelli aos órgãos brasileiros.
Fonte: Jornal O Globo. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/12/16/prefeito-italiano-rebate-acusacao-de-ultraje-a-bandeira-do-brasil-e-critica-distorcoes-em-pedidos-de-cidadania-por-descendencia-virou-um-negocio.ghtml?utm_source=Whatsapp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar
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